quarta-feira, 16 de março de 2016

O trem de Águas Santas e o rodoviarismo

Vi ontem o filme "O trem das Águas Santas", curta sobre o trecho da Oeste de Minas de mesmo nome que foi erradicado pelo governo militar em 1966.

A linha de bitola 0,76 cm da companhia Oeste de Minas ia para cinco regiões distintas, a saber, (1) Divinópolis, Santo Antônio do Monte e Pitangui, (2) Ribeirão Vermelho, Lavras e São Lourenço, (3) Azurita, Belo Horizonte e Nova Era, (4) Tiradentes, Barbacena e Antônio Carlos e (5) Águas Santas. Os trechos (1), (2) e  (3) foram substituídos por bitola métrica e perderam assim a ligação que tinham com São João Del Rei. Uma parte ínfima do trecho (4) foi o que restou da malha de 0,76m; liga São João Del Rei a Tiradentes e tem apenas 12,830 Kms de extensão. A partir de Tiradentes, foi interrompido, em direção a Antônio Carlos (de onde seguiram, nos primórdios da EFOM, os primeiros metros da bitolinha a partir da Estrada de Ferro Dom Pedro II em direção a São João Del Rei), poucos metros além do desvio da estação de Tiradentes, há agora um fim de linha encoberto pela vegetação. Já o trecho (5), que partia de São João Del Rei e terminava em Águas Santas, onde havia um girador para reversão das locomotivas, foi erradicado completamente.


Interrupção da linha em Tiradentes em direção a Antônio Carlos
(Arquivo pessoal)


Águas Santas era, portanto, além de Tiradentes, outro destino turístico de quem partia de São João Del Rei. O percurso da bitolinha da EFOM era destino de muitos turistas em busca das águas da região. O trem, na época, favorecia o acesso à região, principalmente dos menos favorecidos, permitindo, a baixo custo, fácil deslocamento até o balneário que ainda existe. Hoje o trecho seria com certeza muito procurado pelos turistas que chegam ao montes a Tiradentes, único destino atual da linha de ferro.


Estação de Águas Santas
Fonte: PIMENTA et. al. As ferrovias em Minas Gerais. Belo Horizonte: Sesc-MG, 2003


O filme apresenta depoimentos de moradores e imagens recentes do leito da ferrovia, que hoje é uma rodovia asfaltada. Nele, cenas atuais de locomotivas alternam com imagens de carros passando em frente às estações desativadas. Ouvem-se apitos alternados com ruídos de veículos passando, o que permite ao espectador perceber o "clima" dos dois momentos, o do auge e o da decadência. Há cenas do rio das mortes com as ruínas do antigo pontilhão, que foi dinamitado pela VFCO (Precisava disso???!!!!) e da estação que foi demolida, cuja armação do telhado era toda de pinho de riga, madeira europeia caríssima que vinha como lastro nos antigos navios na época da colonização.

É sabido que a implantação do governo militar no Brasil deu continuidade ao projeto rodoviarista iniciado por JK e significou a interrupção do serviço de trens de passageiros em muitos municípios e a supressão de vários trechos de linha Brasil afora. Em Minas Gerais, estado outrora entrecortado por trilhos, as fornalhas das locomotivas começaram a se apagar tão logo o regime se implantou. A Estrada de Ferro Bahia e Minas foi talvez uma das maiores vítimas desse período infeliz, assim como a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e tantas outras, além das muitas linhas de bonde que havia em Belo Horizonte, Lavras, Rio de Janeiro, São Paulo, etc. A EFOM não padeceu menos na administração do país pelos rodoviaristas. e os vários outros trechos de bitolinha da EFOM foram desativados e erradicados sob administração da já RFFSA. Ao todo, foram centenas de quilômetros de trilhos suprimidos no Brasil pelo governo militar em favor do modal rodoviário. Depois dos militares, essa política de erradicação seguiu adiante por outros meios, seja a partir do abandono nos anos 80 ou das concessões empreendidas pelo governo tucano nos anos 90, que, sem fiscalização, abandonam trechos inteiros e depois os devolvem à União já emprestáveis. 

Independente dos meios, fato digno de nota é que com a troca de um modal (ferroviário) pelo outro (rodoviário) prejudicou a qualidade de vida do povo brasileiro, das pessoas que se viram nas plataformas à espera de trens que nunca mais aí chegaram. 

Por que então não reparar por meio da reimplantação de algumas das linhas perdidas, a começar pelo Trem de Águas Santas? A linha já vai até Tiradentes, então seria necessário apenas reabrir a linha até o balneário. Essa possibilidade foi até aventada no início dos anos 80, época em que se decidiu preservar o trecho São João del Rei a Tiradentes, e a RFFSA recuperou o complexo ferroviário de São João (pátio, estação, museu e rotunda), mas infelizmente, a recuperação do trecho de Águas Santas não se concretizou. 

Todo leito da linha é usado pela rodovia asfaltada, então, a recuperação do trecho é possível. É verdade que para isso acontecer seria preciso também licenciamento ambiental, estudo prévio, e muito dinheiro, mas não valeria a pena? Isso não acontece lá fora? Tenho em casa um panfleto alemão do trem de bitola estreita de Radebeul (Schmalspurbahn ou Löβnitzdackel como é carinhosamente chamado). Esse trem foi implantado em apenas nove meses!! E isso entre 1883 e 1884!! Hoje ele é uma atração turística, ao lado de inúmeros trens regionais que atendem praticamente todos os municípios diariamente. Por que coisas assim não acontecem neste país com agilidade semelhante?

É inegável o valor histórico, cultural e turístico que um empreendimento como o trem de Águas Santas teria na região e no país, sem contar o favor social que a volta do trem seria para as pessoas de lá ou de outro lugar. A linha poderia ser usada para fins turísticos nos fins de semana - o que poderia ser motivo para a reativação de outras vaporosas hoje empoeiradas na rotunda de São João - e por um VLT a diesel nos dias úteis para atender à população local. Esse VLT poderia estender seus serviços até São João e Tiradentes também, por que não? Porque as empresas de ônibus não deixam?


Locomotiva 60 literalmente encostada como estátua na estação de São João Del Rei. Poderia, quem sabe, trafegar entre São João e Águas Santas.
(Arquivo pessoal)


Até quando seremos vítimas do cartel rodoviário neste país? Até quando iremos chacoalhar nos ônibus urbanos e amargar em viagens interestaduais noturnas balançando para lá e para cá, perigosamente, nas curvas de nossas rodovias quando poderíamos deslizar rápida e confortavelmente ao longo das avenidas, nas cidades, ou ao longo de vales no deslocamento para outras cidades (e por que não dormindo em cabines como também era possível até o início dos anos 90)?

Têm surgido muitos trens turísticos no país, mas e os trens de passageiros que atendem às pessoas das cidades envolvidas, quando virão? Com exceção do Trem de Carajás no Pará e do Vitória a Minas, que antes da privatização chegou a ter vagões dormitórios no período noturno, que outro serviço de trem como meio de transporte temos? Trem das Águas, Trem da Vale (Ouro-Preto a Mariana), Trem das Montanhas, Trem das Cachoeiras, Trem do Vinho, Trem do Pantanal, etc. são ótimos, mas para quem pode pagar. São passeios caríssimos, pelo curto trajeto que geralmente oferecem, especialmente para famílias com mais de um membro. Além disso, a maioria desses trens só roda nos finais de semana. Por isso, quando precisam ir a uma cidade ou a um bairro vizinho, os moradores dessas cidades precisam usar ônibus ou veículo próprio. O trem turístico não as ajuda nesse sentido. Além disso, há uma morosidade absurda por parte dos órgãos que fiscalizam e dão sinal verde para que esses trens possam rodar. O Trem das Cachoeiras, por exemplo, em Rio Acima, passa por longos períodos parado. Fala-se, há tempos, numa extensão da linha até a cidade de Nova Lima, mas parece brincadeira, porque efetivamente nada acontece. O mesmo se pode dizer sobre o trem Pai da Aviação em Juiz de Fora, que não sai do papel há anos. Aliás, este é o único trem que promete rodar atendendo a população local. Mas cadê?

Locomotiva com pintura da VFCO em 2015 no pátio de São João Del Rei
(Arquivo pessoal)

Olhemos, por isso, para Águas Santas, a pequena cidade balneárea, que vivia quase que exclusivamente do turismo, e que, a despeito disso, por completa negligência e irresponsabilidade do Estado, ficou órfã do seu trem e das óbvias vantagens que teria hoje com ele. Quem sabe o triste fim que teve a linha de lá não nos inspira a tomar fôlego para cobrar, ainda mais, alguma providência dos órgãos governamentais e dos políticos, para que os vários ramais abandonados país afora voltem a circular de alguma forma para atender mais decentemente à população dessas regiões?




Locomotiva 41 em Tiradentes partindo para São João Del Rei em 2015
(Arquivo pessoal)

Caso o leitor se interesse, este é o link do filme sobre o ramal de Águas Santas.