terça-feira, 5 de janeiro de 2016

A locomotiva 800



Falei na última postagem sobre a falta de recursos da Estrada de Ferro Bahia Minas. Essa situação se agravou a partir da década de 50, quando o governo federal já priviligiava as rodovias de maneira mais acentuada. Ao mesmo tempo, as ferrovias, para se tornarem mais competitivas, passaram a substituir suas maria-fumaças por locomotivas movidas a óleo diesel, mais potentes, mais econômicas, mais ágeis e de manutenção mais fácil. Por volta da década de 50, começavam a chegar às principais ferrovias brasileiras locomotivas diesel-elétricas.

A EFBM possuía apenas locomotivas a vapor e, por estar em crise financeira, por falta de investimentos e pela concorrência com a rodovia Rio-Bahia inaugurada em 1943, não tinha meios para adquirir novas máquinas. Houve nessa época a doação de duas locomotivas a vapor da Central do Brasil, mas que não se adaptaram à linha desgastada.  Consciente da impossibilidade de adquirir uma locomotiva a diesel, a Bahiminas criou sua própria máquina a óleo a partir de um motor a diesel que havia em suas oficinas em Ladainha.

Nas oficinas de Ladainha reparavam-se locomotivas a vapor, mas também fabricavam-se vagões de carga, de passageiros e autos de linha. Como havia nas oficinas uma automotriz parada, provavelmente vinda da Central do Brasil, seu motor foi utilizado para a construção de uma locomotiva a diesel, novo desafio para os técnicos de Ladainha, que tiveram muito êxito e dessa forma conseguiram que a EFBM, apesar de todas as dificuldades que tinha, pudesse também, efemeramente, experimentar da dieselização com o feito da 800 e mais tarde com a vinda das U5b. 

A 800 era uma locomotiva B-B e semelhante a uma manobreira. Parecia com a GE de 44 toneladas, pois tinha a cabine no centro da locomotiva como a da GE. Suas extremidades eram iguais e por isso não se podia distinguir externamente a frente da traseira da máquina, exceto pela presença de um sino no alto da parte anterior. Curiosamente, os limpa-trilhos, presentes em ambos os lados, eram de máquinas a vapor, o que dava à 800 um aspecto muito peculiar.

Segue uma comparação entre a 800, à esquerda, e a GE 44 ton à direita:

A imagem da GE 44 ton à direita está disponível em: < http://f.tqn.com/y/modeltrains/1/W/K/P/-/-/44T.jpg> Acesso 02/01/2016
A 800, juntamente com os autos de linha, fomentaram um novo padrão de cores para diferenciá-los das máquinas a vapor. A 800 apresentou inicialmente cabine clara (aparentemente branca) e o restante do corpo em vermelho. Mais tarde a pintura mudou para vermelho em toda a extensão da locomotiva até a altura das janelas laterais. Das janelas para cima, ela era toda branca, como se pode ver parcialmente na foto (as cores não são nítidas). A sigla da ferrovia apresentava na 800 pontos após cada letra, como era já usado nas demais locomotivas. 

 Segundo me informou o sr. Arysbure, a 800 tracionava tanto cargas quanto carros de passageiros, mas com poucos vagões. Apesar do limite de tração que tinha, ela era considerada "ótima de linha" e rodava muito bem nos precários trilhos da EFBM, o que não acontecia com a U5b que passou a rodar bem mais tarde na ferrovia. Além de frequentemente descarrilar, a U5b "cuspia muito óleo".

Com a erradicação da EFBM, a 800 foi embarcada com as outras máquinas para Divinópolis e, infelizmente, não se teve mais notícias dela. Provavelmente foi para o corte com as outras com que partiu de Ladainha.

A foto acima tem autor desconhecido. Infelizmente, conheço apenas duas fotos da 800, a acima e outra que em breve postarei. Caso alguém tenha outra foto dessa máquina, compartilhe por favor, para que possamos saber mais sobre ela.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Inauguro o blog ferrotrilhos falando um pouco sobre a Estrada de Ferro Bahia e Minas, a "Bahiminas", como era mais conhecida, e cuja sigla era EFBM.

Essa estrada de ferro, que ligava a cidade de Caravelas na Bahia até o município de Araçuaí, em Minas Gerais, foi, até hoje, o meio de transporte mais importante que houve nas regiões que ela favorecia, principalmente para a população mais carente. Paradoxalmente, foi talvez a ferrovia menos favorecida em recursos financeiros até a sua desativação pelo governo militar em 1966.

Seus 10 primeiros quilômetros de trilhos foram inaugurados em 24 de agosto de 1881, cujo trecho foi percorrido pela primeira locomotiva da ferrovia, chamada de Joviana e que chegara de navio da Europa um mês antes.

A Bahiminas, a partir dessa data, foi alongando seus trilhos em direção a Minas Gerais até que, em 3 de maio de 1898, a estação de Teófilo Otoni foi inaugurada. Em 1918 foi inaugurada a estação de Ladainha, localidade que surgiu e se tornou uma cidade a partir da instalação de uma oficina geral da ferrovia na região. Desde então, a ferrovia chegou a Novo Cruzeiro em 1924 e finalmente atingiu Araçuaí, fim de linha definitivo da estrada de ferro.

Desde sua inauguração, a EFBM carreou madeira, gado, passageiros, café, carne seca, grãos em geral e laticínios. Como cortava regiões riquíssimas em madeira, com vastas porções de Mata Atlântica praticamente intocadas, a EFBM se valeu por muitos anos da extração de madeira de lei. Com o esgotamento desse recurso devido à exploração excessiva e à necessidade de pastagens para criação de gado, além da aposta do governo no modal rodoviário,as atividades da ferrovia passaram a ser consideradas deficitárias, pois o transporte de cargas e de passageiros que nela havia eram considerados insuficientes para suprir os gastos. 

Sem recursos nem menos para a compra de lastro, em boa parte da ferrovia, os trilhos passaram a ser cobertos de terra em vez de pedras. O desgaste excessivo dos trilhos causavam frequentes descarrilamentos e atraso dos trens.

Em 16 de maio de 1957, é criada a RFFSA por Juscelino  Kubitschek e em 15 de fevereiro de 1965 a EFBM foi incorporada por essa empresa à RMV (Rede Mineira de Viação), assim como a EF Goiás. Dessa fusão, nasceu a VFCO (Viação Férrea Centro Oeste) da qual a EFBM foi considerada um ramal o que permitiu que ela fosse erradicada no ano seguinte em 1966. A incorporação à VFCO permitiu o aporte de algum material rodante à Bahia-Minas. Em 1966, antes da sua desativação, a ferrovia possuía cerca de 20 locomotivas a vapor, alguns autos de linha e apenas seis locomotivas a diesel, uma construída pela própria EFBM em suas oficinas de Ladainha, conhecida como 800, e 5 locomotivas U5b da GE, fornecidas bem mais tarde pela RFFSA/VFCO já no regime militar, como última tentativa de recuperação da ferrovia. Mas, destas 5 máquinas, apenas uma tinha condições de rodar, segundo o sr. Arysbure, ex-ferroviário que atuou nas oficinas de Ladainha e autor do livro Estrada de Ferro Bahia e Minas: a ferrovia do adeus.

Infelizmente, as prometidas ligações por trilhos com a EFVM a partir de Teófilo Otoni ou com a Central  do Brasil a partir do Serro desde Diamantina, que poderiam alavancar os negócios da ferrovia, não se concretizaram. Em seu último ano de existência, a estrada foi transformada em simples ramal da recém criada Viação Férrea Centro-Oeste (VFCO), com a qual não tinha sequer ligação. Essa sequência de eventos aliada ao descaso do Governo Federal da época e dos políticos da região, favoreceu a extinção da ferrovia em 1966 pelo governo militar.

A extinção da Bahiminas, como era conhecida pelos funcionários e usuários, foi uma catástrofe para as regiões por ela favorecidas. O último trem que partiu de Araçuaí em direção a Caravelas veio arrancando os trilhos e dormentes, deixando para trás apenas o leito empoeirado e as lembranças dos moradores traumatizados  pela perda do único veículo que os ligava com o mundo exterior.

Segundo relato de habitantes de Ladainha, o cinema que existia na cidade, a oficina e a escola técnica foram imediatamente destruídos e abandonados.

Os funcionários da ferrovia foram destinados com suas famílias a diferentes regionais da RFFSA. deixando as cidades em que eram lotados praticamente desertas.

Todo o material rodante foi embarcado em carretas em Teófilo Otoni com destino a Divinópolis onde era localizado o "corte" das cargas que lá chegariam. Entre as cargas, incluía-se a heroica 800 de que não se teve mais notícias. Alguns vagões de passageiros da EFBM foram ainda aproveitados para o trem suburbano que ligava Divinópolis à capital mineira nos anos 70. Tais vagões compunham o trem com três ou uma das três automotrizes elétricas ACF. Depois disso, não se tem notícia de para onde foram.

Da ferrovia pouca coisa restou além de algumas obras de arte como estações, túneis e pontilhões. Há alterações no relevo como cortes de rochas e o leito dos trilhos que podem ser vistos ainda hoje por terem se tornado estradas rodoviárias.

Em Carlos Chagas e Nanuque, a lembrança do trem não é mais tão óbvia; sua estações já foram demolidas e pouco há nessas cidades que lembram a ferrovia.

Em Mairinque, há uma ponte de concreto construída por empresa russa em que passavam os trilhos.  Algumas cidades, como Novo Cruzeiro, Ladainha e Valão, assim como povoados como Sucanga e Caporanga, exibem saudosas suas estações reformas. Em Ladainha, há uma avenida que permite ao visitante imaginar o tráfego de trens que existia ali antes dela. Perto dessa avenida, a cidade preserva o imponente prédio que abrigava as oficinas da ferrovia, hoje transformado em ginásio, e construções menores, mas também importantes, como a caixa d'água, o cinema e o almoxarifado.

Em Teófilo Otoni, jaz uma locomotiva-estátua, cosmeticamente restaurada e exposta na praça principal da cidade. Tal locomotiva, chamada de Pojixá, consta como uma das primeiras locomotivas da EFBM e traz o número 1 que pertencia à locomotiva Joviana.  Há aqui uma confusão, porque Joviana foi a primeira locomotiva da ferrovia, mas aparece como o antigo nome da Pojixá em Teófilo Otoni.

Quem chega ou parte de ônibus de Teófilo Otoni, verá que a rodoviária possui um amplo pátio para manobra dos ônibus. Era nele que estavam assentados os trilhos do pátio ferroviário da cidade. O prédio anexo a esse espaço, a estação da cidade, foi demolido para dar lugar à rodoviária da cidade.

Em Caravelas, embora a estação tenha sido demolida e do cais apenas ruínas tenham sobrado, há uma placa com um mapa das estações da ferrovia e um velho trole-estátua exposto ao ar livre.

As fotos da ferrovia são raras, mas os relatos de quem conheceu a "Bahiminas" de perto ainda são muitos. Além dos moradores ou dos funcionários, compositores como Milton Nascimento, José Emílio e Eros Januzzi (vide Ponta de Areia e Estrada de Ferro Bahia-Minas) ajudam a preservar a memória dessa importante mas quase esquecida via férrea, vítima fatal, como tantas outras, dos desmandos políticos frequentemente cometidos no Brasil.

Reproduzo abaixo feliz texto atribuído ao cineasta Gustavo Nolasco no filme Estrada Natural (fonte: www.ibahia.com), que expressa bem a violência com que ocorreu a erradicação da EFBM:

"Sem explicações e sem um paciente a espera de um transplante que justificasse tal cirurgia extremada de amputação, a 'Bahiminas' foi arrancada em 1966 do corpo de baianos e mineiros. O ferro de seus trilhos levados ou jogados ao leu; o apito de seu trem emudecido; seus vagões carcomidos em ferrugem; suas estações esquecidas como sapatos velhos e seus passageiros, atônitos, tendo de aprender a chorar por não serem mais passageiros. No lugar da estrada de ferro ficou o nada. E nesse nada, cemitério de almas feridas, mais uma certeza de que o Brasil está longe de respeitar sua história, sua memória e seus amputados". 


Seguem algumas fotos da EFBM. Infelizmente não pude identificar todos autores das fotos. Algumas delas são de autoria de Roberto Laure: